Convém uma escolaridade na qual os estudantes enxergam sentido, pertinência e relevância, de modo que a sua adesão ao Ensino Médio seja promovida e estimulada. Isso se obterá à medida que as escolas lhes apresentem itinerários cuja identidade e contornos dialoguem com os seus Projetos de Vida.
A Reforma Curricular acerta ao eleger o trabalho de Orientação Profissional como o eixo central do Ensino Médio. De fato, de tudo aquilo com que o adolescente se depara, a questão de fundo a ser respondida nessa fase é aquela que convoca o jovem a se projetar para além do tempo da escola e a formular suas primeiras hipóteses de vocações profissionais.
Isso faz com que saber fazer escolhas seja um importante conteúdo a ser ensinado e a ser aprendido. E é desejável que esse ensino e as experimentações ocorram ainda na escola, ao longo do Ensino Médio, na segurança proporcionada pelo ambiente escolar, e sob a Orientação e amparo de educadores que sustentem cada um na solitária e, por vezes, dramática tarefa de desenhar-se uma identidade profissional.
Essa necessidade se refere a direitos de todos os jovens brasileiros. Aplica-se tanto aos que precisam entrar mais cedo no mercado de trabalho e buscam o Ensino Técnico quanto àqueles que almejam carreiras universitárias. Aplica-se não apenas a escolas privadas, mas sobretudo às escolas públicas.
Em suma, é importante que cada escola de Ensino Médio do país, em todos os sistemas, invista em proporcionar aos jovens um consistente e bem cuidado trabalho de Orientação Profissional. Isso deve implicar em uma carga horária assegurada e um bem estruturado plano que apoie o estudante fase por fase, ao longo dos diferentes momentos de seu processo de escolha.
Nestes momentos de Orientação Profissional, é indicado que haja momentos coletivos e estruturados, em planejamento sequencial (série a série) até a conclusão do Ensino Médio. Mas é sempre no processo de amadurecimento singular, e que envolve um trabalho introspectivo de autoconhecimento necessariamente solitário, que os jovens vão conseguir identificar os caminhos que querem percorrer. Por isso é também preciso haver disponibilidade de acompanhamento individual, no qual cada estudante conte com interlocução e apoio para amadurecer critérios de escolha ao longo de sua trajetória.
No entanto, por mais bem cuidado que seja, o trabalho de Orientação Profissional a ser desenvolvido no Projeto de Vida ganhará respaldo e ressonância na medida em que o estudante se veja convidado, pela escola, a fazer escolhas plenas de sentido. É importante que lhe sejam apresentados leques de escolha entre itinerários nos quais ele reconheça identificação com o seu processo de escolha profissional.
Os itinerários devem ser concebidos de modo a proporcionar ao estudante experimentar e antever como se sente diante deste ou daquele repertório de temas e campos de interesse. Tanto no que se refere a dimensões conceituais, como a aplicações práticas e atuação profissional.
Assim, sendo o acesso a uma escolaridade pertinente um direito incondicional de cada estudante, é importante que se disseminem, pelas escolas e pelos sistemas de ensino, itinerários que dialoguem com os mais diversos campos de atuação profissional.
A instauração de possibilidades nessa perspectiva será determinante para que a escola brasileira consiga atrair, reter e atender às legítimas demandas, interesses e direitos do principal público interessado no Ensino Médio: os estudantes, atuais e futuros.
Essa importante conveniência será atendida na medida em que venham proliferar itinerários cujo desenho, identidade e propósito remetam a áreas de atuação profissional. Orientação nessa linha será determinante para fomentar a adesão das juventudes à escola e para que os estudantes enxerguem a pertinência e relevância do que a escola brasileira tem a lhes apresentar.
Cabe lembrar que, em todas as normativas e pareceres exarados do Conselho Nacional de Educação ao longo dos últimos anos, o desenho por Áreas de Conhecimento era obrigatoriedade atribuída à Formação Geral Básica (FGB). Uma vez atendida esta exigência na FGB, cada escola teria liberdade para discernir como conceber o desenho dos itinerários propostos aos seus alunos. Daí a pertinente previsão, desde então, de “Itinerários integrados”.
Esses recortes por áreas e qualquer taxonomia que se conceba para classificar disciplinas, competências, trilhas e itinerários será construção cultural, convenção definida sempre com alto grau de arbitrariedade. No caso do Ensino Médio brasileiro, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) foi publicada em 2018 e prevê itinerários que sigam as mesmas Áreas de Conhecimento que já compunham, desde 2009, os 4 blocos de provas do novo ENEM. Portanto, no caso brasileiro, a cronologia sugere que o concurso externo tenha não somente antecedido a BNCC como, em certa medida, os blocos que compunham o exame tenham inspirado o recorte daquelas que viriam a ser consagradas, na organização da Base, como as “Áreas do Conhecimento”.
Ainda assim, o texto da BNCC prevê que :
“O currículo do ensino médio seja composto pela Base Nacional Comum Curricular e por itinerários formativos que deverão ser organizados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino”.
Essa disposição não contradiz nem impede o desenho de itinerários integrados, que se distribuam por áreas de atuação profissional em função das quais se articulem diferentes áreas do conhecimento.
Embora prevista pela BNCC, a circunstância acima antecede e ultrapassa os aspectos normativos. A sua pertinência é atemporal e advém da essência e realidade que emana das salas de aula. Mantém-se – e se manterá – a despeito das legislações de cada época. Por essa razão, no momento em que são concebidas as Diretrizes Operacionais do Itinerários, tornam-se oportunas recomendações na linha acima.
Do ponto de vista do estudante, uma escolaridade coerente seria aquela que dedicasse à 1ª série do Ensino Médio sobretudo a conteúdos da Formação Geral Básica. Nessa série cabe também um intenso investimento no trabalho de Orientação Profissional, que prepare o aluno para se defrontar, ao final desse primeiro ano letivo, com uma primeira opção a ser feita: a definição pelo Itinerário Formativo que irá cursar na 2ª série do Ensino Médio. Um planejamento como esse atribui ao Ensino Médio a responsabilidade por desenvolver o “Projeto de Vida” . Dessa forma, evita-se que a antecipação desse trabalho para o 9. ano sobrecarregue prematuramente o aluno do Fundamental.
A prematuridade desses primeiros esboços de escolha requer que elas sejam sempre apresentadas como provisórias e sujeitas a mudanças. Mas a pertinência do trabalho de Orientação Profissional ganhará visibilidade na medida em que o estudante perceber, no leque de opções que lhe forem apresentadas pela escola, alguma ressonância com os temas e campos de atuação profissional que tiverem sido abordados pelo Projeto de Vida.
Assim, em uma abordagem simplificada, o repertório básico de Itinerários Formativos seria constituído pelas seguintes opções:
Exatas e Engenharias: com Matemática, Física e Química como ênfases e componentes curriculares. Itinerário voltado para os estudantes que pensam em seguir carreiras em Engenharia e Matemática.
Biomédicas: com Biologia e Química + Sociologia e Filosofia como ênfases e componentes curriculares. Itinerário voltado para os estudantes que pensam em seguir carreiras como Medicina, Odontologia, Veterinária,Zoologia, Botânica, Fisioterapia e Educação Física.
Humanidades: com Filosofia, Sociologia, História, Geografia, Linguagens como ênfases e componentes curriculares. Itinerário voltado para os estudantes que pensam em seguir carreiras como Psicologia, Letras, Ciências Políticas, Direito, Arquitetura, Artes, Música e Dança.
Ciências Sociais: com Filosofia, Sociologia, História, Geografia, Linguagens + Matemática como ênfases e componentes curriculares. Itinerário voltado para os estudantes que pensam em seguir carreiras como Economia, Administração, Matemática, Ciências Atuariais.
Ao fim da 1ª série, ao se deparar com possibilidades como o do repertório acima, o estudante há de reconhecer nas alternativas os campos de atuação correlatos ao que tenha sido já explorado ao longo do trabalho de Orientação Profissional / Projeto de Vida.
O Processo Seletivo para as graduações
Avaliações têm como finalidade o aprimoramento da qualidade de ensino. É em função desse objetivo que se sustenta a legitimidade de qualquer processo avaliativo. Até mesmo concursos devem cuidar para minorar “efeitos iatrogênicos” que advenham nas práticas escolares.
Diversos países utilizam provas de Estado como parte do processo seletivo. Mas, ao lado do desempenho em exames (S.A.T., Bacalaureat, Abitur, entre outros), o candidato tem também avaliadas outras dimensões de sua trajetória, tais como Histórico Escolar, portfólio de produções e participações em ações sociais Tudo isso tempera e relativiza o peso do desempenho do candidato na prova do concurso. Cabe a cada instituição e a cada graduação arbitrar e discernir o perfil do candidato que convenha a cada graduação. As universidades consideram os resultados do exame de Estado, mas os completam com outras informações, sem renunciar ao controle sobre o seu Processo de Ingresso.
Diferentemente disso, no Brasil o processo de ingresso consiste no concurso.O novo ENEM de 2009 estabeleceu 4 blocos para compor o exame: Linguagens, Matemática, Ciências Humanas e Ciências da Natureza. Tal recorte, cuja inspiração parece vir da organização das licenciaturas, consagrou-se desde então.
Há discrepâncias entre o que vem sendo investigado por cada Bloco da Prova do atual exame e o que faria sentido em Itinerários Formativos coerentes e aderentes ao Projeto de Vida dos Estudantes.
A tentativa de estabelecer correspondência direta entre as Áreas do Conhecimento e a identidade dos Itinerários Formativos é simplismo que não encontra ressonância na vida dos estudantes. A organização que os ajudará a amadurecer o seu processo de autoconhecimento e de escolha é aquela que lhes proporcionará experimentarem-se em meio a temas das diferentes Áreas de Atuação Profissional. É, portanto, recomendável que os Itinerários sejam sempre integrados.
Por essa razão, no momento em que são desenhadas as Diretrizes Operacionais dos Itinerários, preocupa que, mesmo em cenário que não contempla que o ENEM avalie os Itinerários Formativos, o edital de chamada que recruta integrantes para o GT siga o recorte plasmado nos Blocos da Prova do Concurso.
Sobre o conceito de “aprofundamento”
Outro ponto de reflexão sobre o qual será oportuno nos determos é o conceito de aprofundamento. A nossa tradição vem de currículos escolares desenvolvidos em época de escassez de informação, na qual a escolaridade representava muitas vezes a única oportunidade em que os jovens teriam acesso a determinado repertório de conhecimentos. Assim, historicamente, os currículos escolares foram constituídos em um viés enciclopédico, pretendendo uma varredura universal de um conjunto mais amplo de assuntos. Isso talvez fizesse sentido em um ambiente em que a escola era a mais importante – ou a única – oportunidade de aprendizagem.
Quando, hoje, pensamos em currículo, é preciso considerar que as atuais gerações já chegam imersas em mídias e redes sociais. O conhecimento e a informação fluem livremente e de forma abundante. Longe da escassez, impõe-se hoje um excesso de informação. Esse contexto, externo à escola, nos convoca a revermos o seu papel e forma de atuação. O que importa agora é ensinar a filtrar e a ter criticidade.
Além disso, desde os anos 1990 e já por 30 anos, o discurso pedagógico incorporou a perspectiva de ensino por Habilidades e Competências, posto desde as Reformas Educacionais dos anos 1990 e por autores como Edgar Morin, Philippe Perrenoud, Antoni Zabala e outros. Nossa Lei de Diretrizes e Bases (LDB), os Parâmetros, as Diretrizes e a BNCC aderiram em boa hora a essa perspectiva, hoje avaliada no mundo todo em avaliações com o PISA.
Muita tinta já foi gasta ao longo desses 30 anos. No entanto, as práticas escolares do Ensino Médio permanecem ditadas pelas sucessivas edições do ENEM, Está instalada no país uma discrepância, que submete o magistério e as práticas escolares à contradição de uma dupla lógica. Por um lado, os referenciais anunciados, de outro, o que desde 2009, vem sendo exigido concurso.
Por ocasião do desenho das Diretrizes Operacionais dos Itinerários que deverão investigar os “aprofundamentos”, é fundamental que se discuta o que se entende por esse último termo.
A experiência demonstra que muitas das questões do atual exame investigam detalhes excessivos, que só teriam pertinência ao longo das graduações. Não tem portanto cabimento nem na FGB, nem nos Itinerários Formativos da Educação Básica. Remetem a conteúdos próprios das graduações e para ela devem ser endereçados.
O texto abaixo traz questões de recentes edições do ENEM.O contraste entre elas demonstra a amplitude do aprofundamento e complexidade entre itens de uma mesma edição do exame. Fica evidente que alguns deles são itens de complexidade bem maior, e que portanto ultrapassam o que seria próprio e de se esperar da Formação Geral Básica.
É pertinente o cuidado de se buscar um processo seletivo mais equânime e inclusivo no acesso à graduação oficial. Outros países, no entanto, utilizam a nota do exame de Estado como parte do processo. Além do desempenho no exame, o candidato tem também consideradas outras dimensões de sua trajetória. No Brasil fez-se a opção por um sistema unificado de seleção que se apoia exclusivamente nas notas de um exame unificado. Uma vez dado esse passo rumo à centralização em 2009, torna-se agora mais complexa a caminhada para a flexibilização curricular.
O recorrente insucesso do Ensino Médio faz com que o interesse da sociedade esteja em que a questão seja enfrentada. Afinal, avaliações devem estar a serviço da qualidade de ensino e a escolaridade proporcionada aos jovens deve ser pertinente. A finalidade última precisa ser a qualidade e a relevância da experiência proporcionada ao estudante. Processos avaliativos são o meio para o melhor alcance desse objetivo maior. A hipótese de condicionar a experiência do estudante à conveniência do processo seletivo seria inverter prioridades e confundir os meios com os fins. Urge que se restabeleça como valor maior a pertinência do que no Brasil a Escola proporciona às nossas juventudes.
Por isso, é importante que essa perspectiva de cuidado seja observada por ocasião da elaboração das Diretrizes Operacionais para a implementação dos “itinerários formativos de aprofundamento”.
Pedro Flexa Ribeiro