Nos últimos anos, todos os setores vêm sofrendo o crescente impacto da acelerada revolução midiática. O fato de as novas gerações estarem socializando já imersas em tecnologia aumenta o fosso entre as gerações. Isso impacta os sistemas de ensino do mundo inteiro, que precisam se adaptar à nova realidade. Em meio a essas intensas modificações, as escolas estão sendo colhidas à sua revelia. Professores e educadores precisam reagir em tempo real.
No debate sobre a Reforma do Ensino Médio, que deve passar por novas mudanças que serão implementadas já em 2025, os setores envolvidos recorrem a argumentos de 3 diferentes ordens, que convém distinguir:
- A estrutural, que está ligada a deficiências básicas crônicas e inadmissíveis nas escolas brasileiras, como falta de conexão, saneamento básico, entre outros;
- A circunstancial, sobre os impactos da pandemia, agora que vivemos como consequência as perdas de aprendizagem.
- E, por fim, a dimensão essencial, que é o debate curricular e o que de fato cabe aos alunos aprenderem. E é na perspectiva dos seus legítimos interesses que devem ser dados os encaminhamentos e concebido o currículo que lhes convém. O bom debate sobre o currículo requer que se parta dessa constatação.
A pauta deve ser prioritariamente curricular. Afinal, os atuais alunos integram as gerações de brasileiros que estarão atuando no mercado de trabalho nas décadas de 2040, 2050 e 2060. Estamos convocados a discernir que tipo de trajetória poderá melhor prepará-los para o cenário que encontrarão.
A diversidade curricular é necessária por duas razões:
- Para o estudante: oferece a cada um deles o direito de escolher o itinerário formativo que faça sentido para a sua perspectiva, no qual ele encontrará conteúdos pertinentes com o seu Projeto Pessoal de Vida, tornando a escola mais atrativa, criando aderência e evitando a evasão precoce.
- Para a escola e professores: a parte flexível do currículo é a margem onde escolas e professores podem inovar e conceber, a seu critério, atualizações que tornem as instituições mais contemporâneas das gerações que nos chegam hoje.
Todo o resto do mundo já navega em um ambiente curricular bem mais diverso e menos centralizado. Mas nosso sistema de ensino é engessado e padronizado. Funcionamos sob tutela do Estado desde muito tempo, uma característica que atravessou o Império e se estendeu pela República. Fica evidente o predomínio do espírito de centralização e controle, apenas interrompido por breves respiros de descentralização e efetiva liberdade de ensino. No século passado, a centralização esteve mais evidente nos períodos Vargas e nos governos Militares. A redemocratização dos anos 1980 e a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), de 1996, trouxe o aceno de maior liberdade de ensino.
No entanto, nas últimas décadas, o desenvolvimento tecnológico e o robustecimento dos sistemas de avaliação em larga escala possibilitou que esse tenha passado a ser o eixo propulsor da centralização curricular, que atingiu o paroxismo através do Novo ENEM, realizado a partir de 2009.
Fracasso e evasão
Da experiência com o currículo unitário, o Brasil tem colhido resultados sempre insatisfatórios que apontam, sistematicamente, para a repetência, o fracasso e o abandono escolar. Frente ao que se pratica em outros países, o currículo unitário e centralizado é uma espécie de excentricidade brasileira, que consagrou o Ensino Médio como sendo o segmento que afasta da escola as juventudes menos favorecidas, justamente as que mais precisam dela.
É preciso considerar que o currículo do Ensino Médio está congestionado por excesso de conteúdos, sem pertinência na escola de Educação Básica. De fato, o repertório até aqui praticado era reflexo de contexto de escassez de informações e, por isso, enciclopédico. Tal fato conduziu a uma hipertrofia e a um estreitamento do currículo, o que empobrece a margem para escolhas, sobrecarrega os estudantes e gera fracasso e abandono.
Muitos pontos do atual programa em vigor no Ensino Médio não têm mais pertinência nem na Formação Geral Básica, nem em Itinerário algum. Eles não pertencem à Educação Básica e deveriam ser endereçados para as graduações. Urge que se crie um fórum em que a Educação Básica e as graduações possam atualizar quais devem ser, nos tempos atuais, os pré-requisitos e as condições para ingresso no ensino superior.
A Formação Geral Básica (FGB) e a importância da parte flexível do currículo
Fazer escolhas é algo que se ensina e se aprende, e o melhor momento para isso é no Ensino Médio, em processo amparado por Orientação Profissional, tendo como propósito os primeiros esboços do Projeto de Vida. Faz parte desse aprendizado a compreensão de que toda escolha implica necessariamente algum tipo de renúncia. A diversidade curricular nos conduz a um cenário em que, assegurada uma Formação Geral Básica (FGB), nem todos terão acesso a tudo. Haverá escolhas e renúncias.
Em 2025 já não cabem mais currículos enciclopédicos, nem programas e abordagens cujos prazos de validade já venceram. Tudo isso repele, causa fracasso, desistência e abandono. Vencer a evasão, reter o aluno, tornar a escola atraente, fazer com que ele enxergue relevância e sentido: o currículo deve dialogar, ter aderência com o Projeto de Vida de cada um.
Dois pontos principais merecem atenção:
- É equivocado pretender um suposto equilíbrio entre as cargas de diferentes disciplinas. É próprio e constituinte da diversidade curricular a coexistência de diferentes ênfases. O estabelecimento de hierarquias é natural e universal, cada sistema de ensino valoriza o ensino do idioma nacional e a Matemática. A pretensão de equilíbrio ou de “não hierarquização” não encontra amparo nem antecedente em currículo algum.
- Como foi dito acima, renúncias fazem parte de escolhas. Em um cenário de diversidade curricular, é natural que nem todos tenham acesso a tudo. Direitos básicos de aprendizagem serão assegurados na FGB. O que a exceder deve-se a aprofundamentos específicos de cada Itinerário Formativo.
A importância do ENEM nas mudanças
O processo seletivo para o nível superior desempenha um papel fundamental para a Reforma Curricular. A depender de como for conduzido, ele será fator indutor das mudanças necessárias, sinalizando para as escolas como ofertar a seus alunos itinerários relevantes e que dialoguem com seus Projetos de Vida.
Em outros países esse é processo que considera diversas etapas e critérios, incluindo o desempenho do candidato em exames de Estado. Mas é concedida a cada Universidade o controle sobre o seu processo seletivo e a definição das condições para admissão em cada curso de graduação.
Diferente disso, no Brasil optou-se, desde 2009, por transferir integralmente o controle do processo para o INEP, autarquia ligada ao MEC, e restringir o processo seletivo ao ENEM. Ao mesmo tempo que abduziu das universidades federais a definição do seu processo de ingresso, essa estratégia de centralização conferiu ao INEP uma enorme responsabilidade pelo que se ensina e o que se aprende no Ensino Médio de todas as escolas do país. Ao cabo de 13 edições, o novo ENEM trouxe como sequela fazer com que a padronização, a hipertrofia e o estreitamento do currículo atingissem o seu paroxismo. O resultado colhido aponta, mais uma vez, para o desestímulo e afastamento dos estudantes, que abandonam o Ensino Médio.
Sendo o sentido das avaliações em larga escala a promoção da qualidade nas práticas pedagógicas, recai sobre o avaliador o dever de conceber os exames de forma a reverter essa tendência. A Reforma Curricular propõe a Orientação Profissional e a definição do Projeto de Vida como estratégia para conferir relevância à trajetória escolar. Por isso, o ENEM teria o importante papel de induzir escolas de todo o país a ofertarem itinerários que tenham aderência ao Projeto de Vida dos alunos.
A efetiva implementação da Reforma depende de que o ENEM avalie os itinerários Formativos. O INEP não deve se omitir nem se abster dessa providência, sob risco de perpetuar por ainda mais tempo a nossa característica de um currículo único e engessado pelo chamamento de processos seletivos unificados. A avaliação do futuro é a que favorece a inovação. E é em função da instalação dessa nova realidade que o ENEM deve ser concebido.
Direitos dos estudantes
De todos os públicos envolvidos nesta reforma, o mais interessado é formado por estudantes e pelas próximas gerações de brasileiros.
A liberdade de ensino não se refere apenas à prerrogativa de quem ensina, mas sobretudo a direitos de quem aprende: os estudantes brasileiros. Tratamos aqui de um direito inalienável e incondicional. Em uma democracia que preza pela liberdade de pensamento e de ensino, nenhuma instância tem legitimidade para condicioná-lo.
Essa promessa vem sendo protelada há décadas. É nosso dever oferecer aos jovens opções curriculares pertinentes, escolhas consistentes, dignas do nome. Já não cabe centralizar e subordinar essa determinação a uma agência central. Nenhum argumento é válido para postergar ainda mais o que vem sendo prometido. Não faz sentido revogar o avanço onde ele existe.
Cada estudante brasileiro deve ter atendidos os seus direitos básicos de aprendizagem na FGB. Cada estudante brasileiro tem direito ao acesso a Itinerários Formativos pertinentes e que correspondam à sua realidade, perspectiva e Projeto de Vida.
Cada cidadão brasileiros tem direito a escolher para seu filho o tipo de escolaridade que corresponda às suas perspectivas. Cada contribuinte espera comprovações da eficácia e do impacto positivo obtido pelo bom emprego dos recursos arrecadados. Cada eleitor tem expectativas a serem correspondidas.